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COROA de SONETOS de RÓ MAR
"AH, UM SONETO…" de FERNANDO PESSOA
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"AH, UM SONETO…"
Meu coração é um almirante louco
Que abandonou a profissão do mar
E que a vai relembrando pouco a pouco
Em casa a passear a passear…
No movimento (eu mesmo me desloco
Nesta cadeira, só de o imaginar)
O mar abandonado fica em foco
Nos músculos cansados de parar.
Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
Mas — esta é boa! — era do coração
Que eu falava... e onde diabo estou eu agora
Com almirante em vez de sensação?...
© Álvaro de Campos | Fernando Pessoa
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"AH, UM SONETO…"
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"Meu coração é um almirante louco",
Que navegou por mares em movimento
N' adversidade pré-destinada, com pouco
Contentamento num descontentamento!
Ah, minh' alma aventureira de que tampouco
Me orgulho de ter o leme em momento
D' olhar ousado à musa! Vento de louco,
Que faço neste fim de mundo sedento!?
Abalroado ao navio fundo,
Num mergulhar inusitado por um mar
Perplexo de desassossego que afundo!
Ah, tão só e sempre o mesmíssimo olhar,
Paredes siamesas com este mundo,
"Que abandonou a profissão do mar!"
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"Que abandonou a profissão do mar"
Pois, o próprio meio o aconselhou
A viver uma vida mais pacata! Lar
Que é moradia d' ânimos o exaltou!
Um olhar nobre, enorme vontade d' amar,
Ou melhor, de ser o mor amado ofuscou
As janelas que têm maior vista pró mar
E num minuto o movimento faiscou!
Ah, triste sina! Esta minha lente baça
Navegando o mar alto..., naufrago por pouco,
A memória colmata tempo de desgraça...
A quem amou por esse mar de tão pouco
Existencialismo, olhando toda a graça
"E que a vai relembrando pouco a pouco!"
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"E que a vai relembrando pouco a pouco"
Versando tão convincente quanto dor...
Distópico, fragmentado e quase louco,
O mesmíssimo causa fúria d' amor;
A paixão platónica... por tão pouco
Sustentada, tanto que amou e a dor
Da natureza formosa que o tem louco,
Amor duma vida quase imperador!
A persiana suspensa num torcicolo
Que m' adentra a espinha! Ah, falta-me o ar!
Então, ligo a ventoinha e descolo...
Imaginário qu' intruso... o descansar
De tudo o que oportuna meu consolo,
"Em casa a passear a passear…"
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"Em casa a passear a passear…"
Deambulando p' las margens do meu rio
Humedeço o aparo em tinta azul-mar
Dum tempo que a vai amando a fio;
Fino traço de pele rosa do pomar,
Dum perfume único, de flor que crio
Nos rebentos da roseira; e têm olhar
Terno os seus botões, meu arrepio...
Ah, formosura vejo o tempo de amar
No presente! Como isto me deixa louco!?
E a letra fora da linha... a dealbar...
Deambular p'la folha branca num rebloco
De letras invisíveis, tais como o olhar
"No movimento (eu mesmo me desloco"...)
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"No movimento (eu mesmo me desloco"
Nesta folha branca, só de o desenhar)
Sinto-me outro, quase novo e coloco
O lado enfadado no fundo do mar;
Mergulhado nas profundezas por um pouco
Não afogo! Há qu' aprender a nadar!
É crucial pra um Almirante, por pouco
Vi o céu do rés-do-chão a desmaiar...
Contudo, meu lado direito dos costados
Estava com disposição pra remar
E o vento propicio a floreados!
Ah, formosura tenho o dia para amar,
Vi as estrelas e os anjos espantados
("Nesta cadeira, só de o imaginar)"...
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("Nesta cadeira, só de o imaginar)"
A minha memória galga o agrado
E invade espaço num novo despertar
Qu' alucina o dia; verve de amado...
Se nesta pré-destinada algo inspirar
Não olho pró outro lado que é o desolado;
Pode haver utopia mais nobre qu' amar!?
Só a real beleza que és, meu respirar...
A noite rompe estrelada no cinzento
E corro as persianas de madeiro oco
No movimento ente o firmamento...
Ah, o amor pedaço de vida sem troco!
Da sensação que ronda o momento,
"O mar abandonado fica em foco";
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"O mar abandonado fica em foco"
Num pranto que me deixa deveras cansado
Para sonhar... e neste espaço sufoco,
Que me valha aquele ancião ditado:
"Deitar cedo e cedo erguer..."! E desloco
A minha moleirinha num almofadado,
Que consola a vista do que tanto desfoco
No movimento à noite daquele passado!
Do escritório ao quatro, martelo
Dois passos no carcomido patamar
Pelas traças do tempo... e depois... zelo
O desassossego num repousante mar
E o clarão do velho do Restelo
"Nos músculos cansados de parar";
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"Nos músculos cansados de parar"
Exercito a outra alma de trapezista,
Qualquer coisa que passe por este meu ar
Bucólico e dê a volta ao artista...
Ah, malabarista, isto é que é dançar!
Sacudir os demónios da minha vista
E alucinar num normal passear...
Folhetinista de uma tal revista!?
Realmente isto é só ilusão,
Pois é, já lá vai o tempo dos abraços
E do pé de dança aquentando o coração;
Agora tudo é diferente nos laços
Que unem o universo e a construção...
"Há saudades nas pernas e nos braços";
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"Há saudades nas pernas e nos braços"
De outrora, passeando no Rossio
Da minha Lisboa, elixir dos nossos
Antepassados e eu tanto aprecio...
Ah, quantos os passos... sapato de meus passos
Da Praça da Figueira à do Comércio
(Terreiro de Paço) engraxado nos grassos
Da Av. da Liberdade ao Rossio...
Desci-a a olhar prá esquerda e direita
Como um parafuso que enrosca na hora,
Senti o Tejo em casa e desta feita
Continuava p'los verdes azul afora...
Caminhos de ferro e a rua estreita,
"Há saudades no cérebro por fora."
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"Há saudades no cérebro por fora."
A Estação do Rossio imponente
E à esquina o quiosque de outrora
Com o jornal do dia da cor que se sente...
Acelerava o passo p'la rua afora...
Ah, a sede daquelas gordas era premente!
E no Chiado sentava minha gente,
Na brasileira, o café de toda a hora;
E sempre saía um verso inédito,
Havia alma nos demais calorosos abraços
E distraidamente deixava mérito,
Que nem eu conhecia, coisas de pedaços
Meus! E agora só e o pretérito...
"Há grandes raivas feitas de cansaços."
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"Há grandes raivas feitas de cansaços"
Que m' assoleiam a alma, quis o destino
Que assim fosse! E eu que nos tempos escassos
Fui senhor de colete e chapéu de tino;
Quanto infortúnio e má sorte em laços!
Ah, quão ingénuos os meus sentimentos
Num mar tão arauto! Vi os meus abraços
Meninos cresceram em mil tormentos...
O desassossego do desassossego
É meu, só meu! Vale a pena a paixão
Por ela ainda que não mereça apego!
Dediquei uma vida sem conclusão,
Num sentido... num sentido e fiquei cego,
"Mas — esta é boa! — era do coração"...
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"Mas — esta é boa! — era do coração"
Que eu falava..., da aldeia e da mocidade,
Onde passeio os dias da solidão,
Tem fonte fresca e toda a minha vaidade...
De olhos cor de mar, de bilha na mão
Lá vai ela ligeira, moça de idade,
P'las escadas que dão pró casarão,
Cautelosa e sem olhar a liberdade;
Confesso que corei e não era de hoje,
Calculo ser doença para toda a hora
E não canso de a olhar... e ela foge...
Entre dedos... Ah, Senhora da Boa-hora!
É do amor de outrora, não do de hoje
"Que eu falava... e onde diabo estou eu agora"!?
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"Que eu falava... e onde diabo estou eu agora"!?
Quiçá, confins do mar perto de naufragar!
Amanhece e eu impróprio para a hora,
Atrasei o relógio a cochilar...
Paredes siamesas, lembrei o qu' agora
Tenho na memória para passear...
Vem à tona o mar, um navegar afora
E a tinta permanente a salpicar...
Vale a pena dar asas ao sonho,
O coração leme da embarcação,
Há razão no que oponho... componho...
Contemplar minha viagem de paixão
Num poema de futuro mais risonho,
"Com almirante em vez de sensação?..."
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"Com almirante em vez de sensação?..."
E neste compasso tão descompassado
Movimento a pauta duma canção
Que me desloca do longínquo passado!
Ah, poetas, imortais da nação!
Como eu gostaria de escrever meu fado
Num poema são de letras e escanção,
Com cabeça, tronco e membros, com tudo...
Ah, se eu tivesse o meu amor menino!
Tudo era mais fácil para este mouco,
Que desafina as cordas do violino...
Neste fim de outono, inverno por pouco,
"Ah, um soneto...", é que era... era hino!
"Meu coração é um almirante louco".
© Ró Mar | 2020/07/27
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COROA de SONETOS de RÓ MAR