sábado, 19 de fevereiro de 2022

A MENSAGEM

 


A MENSAGEM


Voa imbuído de amor o sentimento,
Nas asas da esperança renovada,
Anunciando o romper da madrugada,
Pintado com os tons do encantamento!

Mensageiro da paz tão desejada,
Nos teatros de guerra e sofrimento,
Não passa enfim de pó lançado ao vento,
Que se desfaz no ar e fica em nada!

Mas é uma constante o seu sofrer,
Esta mágoa que sangra e faz doer,
No peito de quem sente a dor alheia!

Aos quatro ventos lança e vai gritando,
As farpas que dispara sempre e quando,
A mente de revolta se incendeia!...

© J. M. Cabrita Neves | 02/2022

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

O FADO



COROA DE SONETOS


de RAADOMINGOS e RÓ MAR


O FADO


***

I


A saudade patente bem vincada,
Quando nas tascas do fado vadio;
Cordas das gargantas em desafio
Cantavam em bonita desgarrada.

A guitarra antes forte dedilhada
Carpe presente um outro trino frio;
Sente a falta do portentoso brio
Da Severa cantora e camarada.

Amores antigos por si cantados,
Fenecem nas notas de tanto dó
Em escalas de muitos condados.

Seu corpo dorido desfeito e só
Aos poucos tem os dias contados;
Se não se desfizer da sina o nó!

© RAADOMINGOS

*

II

"Se não se desfizer da sina o nó"
Marinheiro que atracou cantadeiras
Ao velho veleiro com brincadeiras,
Boémia e poesia não te sentirás só!

Foram décadas por terra além-mar
Exibindo o peito, espontaneidades
Exorcizando tristeza e saudades
Retratando o quotidiano popular.

Sal que o transformou na mais pura e nobre
Canção, que a todos enche o coração;
Trinado p'lo contemporâneo pobre

E também p'lo rico com precisão!
Que faz com que a poesia se desdobre
P´lo acorde fazendo do fado nação.

© Ró Mar

*

III

"P'lo acorde fazendo do fado nação"
Com viola e guitarra portuguesa
Meia dúzia de pessoas à mesa,
Fica composta a área do salão.

Velas, caldo verde, chouriço e pão,
Abrandam do peito certa tristeza,
Contrastando com a enorme beleza,
Da voz que sabe tão bem o refrão.

Estribilho qu' emociona e arrepia,
Que se entranha bem fundo e s' espalma
P'la ligação que se dá e se cria.

Não se explica como é qu' ela calma,
Mas o certo é que é terapia;
Que vai deixando mais solta e leve a alma.

© RAADOMINGOS

*

IV

"Que vai deixando mais solta e leve a alma"
E o coração apaixonado ao vozeirão
Espelhando os Senhores da criação
Com o imponente brio de vénia e palma.

Nas ruas e vielas, botecos e outros
A gíria fez bairros carismáticos,
Que por nobres infaustos e críticos
Fez do fado ocioso o oficio doutros.

Na festa carnavalesca a essência
D' alma à letra e o vinho português,
Que sempre foi bom por excelência!

Levou-o das ruas ao teatro, ao burguês,
Que à boca cheia lhe deu consistência
P´la valia das precisões do freguês.

© Ró Mar

*

V

"P'la valia das precisões do freguês"
Tratam os agora pelas palminhas;
Ver se das frestas das velhas tabuinhas
Cresce outro tipo d' entalhes e quês.

Dos anos passados e dos porquês...
Coitada da animada Mariquinhas
Se em troca das habituais prendinhas
Os mariolas trouxessem bouquês.

O consagrado agora é mais brilhante
Há novo estofo outro tipo de mobília
Um património bem mais interessante.

Notáveis serões de aprazível vigília;
De um convívio salutar, apaixonante
Onde se juntam como sendo família.

© RAADOMINGOS

*

VI

"Onde se juntam como sendo família"
Partilhando o social e cultural
Na amena cavaqueira, musical
De cordas afinadas na voz da Ercília;

A "Santa do Fado", atriz de revista,
Que a voz elevou a internacional
Através de discos, rádio local
E digressões por fora, grande artista!

Por terras de França, América e Brasil
Acompanhada de ilustres guitarristas,
Armandinho e Raul Nery, mostrou o brio.

Das casas de fado ao teatro fez conquistas;
Da sétima arte à rádio o fado vadio
Volveu o palco do mundo, deu nas vistas!

© Ró Mar

*

VII

"Volveu o palco do mundo, deu nas vistas"
E pautou história. O fado "clássico"
Fez do triste viver do povo icónico
E em simbiose com o romantismo "cristas".

A exibição em salões da aristocracia
Fez com que ele se tornasse a expressão
Musical portuguesa de tradição
Retratando a saudade, o ciúme e a nostalgia.

Muitos foram os que lhe deram voz
De notar Hermínia Silva, que fez oficio
E nome ao fado "musicado" de todos nós;

Lucília do Carmo, F. Maurício
Entre outros... é de enobrecer a voz
De Alfredo Marceneiro, o patrício.

© Ró Mar

*

VIII

"De Alfredo Marceneiro, o patrício,"
Que deu voz à canção e seu glamour,
Vestido a preceito, letra de 'amour'
P'la arte assinada em nome fictício.

Sobe ao palco do Coliseu dos Recreios
Com a Opereta "História do Fado",
Beatriz Costa e Vasco Santana ao lado
Do mestre dos auspiciosos gorjeios.

O nosso "Fabuloso Marceneiro"
Foi a voz da Valentim de Carvalho
E toda a sua vida foi marceneiro;

De boina e lenço de seda, dava valho,
"Ti’ Alfredo" tinha estilo de obreiro,
De mãos nos bolsos saía o fado 'agasalho'.

© Ró Mar

*

IX

"De mãos nos bolsos saía o fado 'agasalho'"
E de xaile negro vibrava a eximia
Voz de Amália Rodrigues, idolatria
Duma cultura, abertura de atalho...

Considerada a "Rainha do Fado"
E amada por todos, levou a canção
Do seu povo com alma além do coração
Elevando-a como "poesia do fado".

Graças à 'Diva' o 'tradicional' consolida,
Ícone da cultura nacional,
Êxito internacional, canção querida.

Com Amália a Catedral de Portugal,
O apogeu do fado moderno na lida
Do grã Camões e outros, monumental!

© Ró Mar

*

X

"Do grã Camões e outros, monumental!"
Tanto é o que traduzo em arrepio
P'la sua voz "Povo que lavas no rio",
Relembrar é de jus e fundamental!

Letra nesta época transcendental,
Que só a entrega e genuíno brio
Da nossa distinta Dama ouro-fio
Lhe confere autenticidade sem igual.

Grande responsável e com amor
Que de si a admiração era devota
Temos também o Alan, compositor.

Registo d' entre tantas a "Gaivota",
A "Estranha forma de vida" e "Lianor"
Grandes composições do poliglota.

© RAADOMINGOS

*

XI

"Grandes composições do poliglota"
Abriram no horizonte outra janela
E de braço dado a fadista e a Estrela,
Embarcaram na aventura patriota.

Seguir a Rainha tudo se atenta e nota;
Muito se admira a compleição,
Se se comporta na perfeição,
Se o vestido é feio ou janota!

Mas, isso pouco lhe interessa qu' aconteça
Fecha os olhos e sente a canção
Com um ligeiro inclinar de cabeça!

Comove-se como se em oração
Rezasse pedindo a Deus, que depressa
Lhe acabe com tamanha solidão!

© RAADOMINGOS

*

XII

"Lhe acabe com tamanha solidão!"
É palavra d' ordem no Faia, Bairro Alto;
Retiro d' artistas, gabarito lauto;
Carlos do Carmo como anfitrião!

Tantos conduziu pela sua mão;
Lenita, Tarouca, Maria da Fé...
Agora, Moura, Mariza, Camané
E tantos outros desta geração!

Sons que trazem novos andamentos
E glórias, como Dulce Pontes e a assaz
"Canção do Mar" entre outros êxitos;

Especiais no moderno que se faz
Portadoras de novos sentimentos;
Dão ao futuro um excelente cartaz!

© RAADOMINGOS

*

XIII

"Dão ao futuro um excelente cartaz!"
Orgulho sabê-las transpor fronteiras;
Não sendo das afamadas primeiras,
São as que presentemente a plateia apraz!

Junto ao Olympia, Paris a passar,
Ver no néon quem são os da atuação
Não há no íntimo maior comoção
Do que ler o que está a publicitar!

Ter no palco uma bandeira içada,
Repovoar novamente a memória
Saber ser nossa verde e encarnada;

É degustação de uma doce vitória
Que jamais por todos será apagada
Dos arquivos da Lusitânia história!

© RAADOMINGOS

 *

XIV

 "Dos arquivos da Lusitânia história"
Recordamos dois séculos de cultura
Popular, a arte do fado e sua postura
Mundialmente, os momentos de glória.

Através do espólio dos grandes do fado
E de memórias doutros conflui a grandeza
Da canção lisboeta e guitarra portuguesa,
Dos bairros típicos... Uno Museu do Fado.

A velha e eterna tradição que fruamos
Nas Casas de Fado, a anciã pisada
De arte e talento, que sempre recriamos;

E na Casa de Amália sentimos vida,
Memorizamos sensações, miramos
"A saudade patente bem vincada."

© Ró Mar 
 
***

Sonetos do Universo | 02/ 2022

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

MOVER MONTANHAS




COROA DE SONETOS 

de Mª JOÃO BRITO DE SOUSA e RÓ MAR

MOVER MONTANHAS


***

I

Não te procurarei até que venhas
E que tragas contigo o que levaste
De mim, que te dei mais do que sonhaste,
De mim, que hoje abandonas e desdenhas

Como se as tuas glosas fossem estranhas
Aos versos que comigo partilhaste...
Voa, então, até onde te encantaste
Ainda que voando me detenhas

Mas se em verdade, Musa, me olvidaste,
Enquanto noutras vozes te entretenhas
Ache eu a voz da voz que em mim calaste

E ainda que me perca se me ganhas,
É no poema que hoje me negaste
Que encontro a força pra mover montanhas.

© Mª João Brito de Sousa

*

II

"Que encontro a força pra mover montanhas"
E destrono a Musa feiticeira,
Que de repente em manhas e artimanhas
Dá volta ao miolo e traz canseira!

Ah, como me apraz saber-me capaz
De improvisar sem ter fada madrinha
P'ra o toque final, tão bem que isso faz!
Não sendo ingrata, também sou estrelinha!

Venha o pôr do Sol, que eu desfilo ao lado!
Haja mar altaneiro e mais natureza
Para me consolar no poema amado!

Se tiveres de novo a delicadeza 
De sobrevoar o meu céu estrelado
Serás o luar dos meus dias de tristeza.

© Ró Mar

*

III

"Serás o luar dos meus dias de tristeza"
E o sol das minhas noites de alegria,
Mas fada não serás onde a magia..
Seja maior que o pão que levo à mesa.

Se sou plebeia, serás tu princesa
De um reino que nem sei se principia
Ou finda assim que cessa a melodia
A que vou estando noite e dia presa?

Existirás pr`além da teoria
E serás, realmente, a chama acesa 
Duma candeia que só me alumia

Quando a palavra voa e me não pesa?
Musa, não sei que chama ardente ou fria
Soube acender em mim tanta incerteza...

© Mª João Brito de Sousa

*

IV

"Soube acender em mim tanta incerteza..."
Por minha culpa, entreguei o coração
Num dia núveo p'ra sentir firmeza
Na minh' alma ao compor uma canção;

Mas, dias não são dias, hoje sei bem
O quanto tu me amaste na surdina;
Se me foges é porque queres-me bem
E eu sempre preciso da lamparina...

Ah, quantas as noites o Morfeu não vem!
E, o que me têm acesa noite adentro
És mesmo tu: ó Musa de todos sem...

Querubina da colina, epicentro
Da retina, qual o horizonte advém
Liberto, peculiar do circuncentro!

© Ró Mar

*

V

"Liberto, peculiar do circuncentro(!)",
Polígono imperfeito, deus de barro,
Espiral de fumo ou cinza de cigarro
E tudo o mais que exista cá por dentro

Quando de ti me afasto e desconcentro
E nunca sei se agarro e quando agarro...
Desse abraço improvável e bizarro
Há-de nascer a luz de um céu cruento

Montanhas trazes dentro do teu tarro
E algumas são de ferro e de cimento
Ainda fresco ou já mostrando o sarro

Do tempo em imparável movimento
Como se o ir e vir de um autocarro
Que não tem um motor nem traz assento

© Mª João Brito de Sousa

 *

VI

"Que não tem um motor nem traz assento"
E este carcomido, desamparado,
Onde a poeira aninha no argumento
Ressaltando o tempo pré-encerrado!

Por mais que abra janelas p'ra arejar
A maleita está aqui de tal forma,
Que não resta dúvida a despistar
Nem exclamações, tornando-se norma.

O vai-e-vem de engrimância na escalada
Ressalta, saltam os carretos, teia
Premiando a permuta prá 'pousada'.

 Imagético, contudo recheia
De esperança o olhar da voz calada
E os dedos tremulando a ideia!

© Ró Mar

*

VII

"E os dedos tremulando a ideia",
Movem montanhas, plantam mil florestas
E, solidários, limam as arestas
Das estrelas-do-mar na maré cheia

Ninguém os pára, ninguém os refreia;
Nem os arqueiros com as suas bestas
Podem abrir mais que pequenas frestas
No muro de vontade que os rodeia

E se cansados fazem suas sestas
No sal do mar, em castelos de areia,
Jamais as horas lhes serão funestas

Que à noite hão-de ter astros para a ceia
Degustados ao som de mil orquestras
Conduzidas por uma só sereia.

© Mª João Brito de Sousa

*

VIII

"Conduzidas por uma só sereia"
É mote de génio, que iça esta barca
Cambaleante entre o mar e a candeia
Na mística e aventurada matriarca;

Protetora das ninfas Oceânides
Criadora de floreado marítimo,
Que ascende às excelsas efemérides,
Ah, Tétis, Musa do vento Oceânico!

 Move-se a Terra e ascende-se aos Céus
Neste belo pedaço mitológico 
Onde se faz viagens pelos ilhéus;

Metáforas de mérito cronológico
Filiadas na Lumena dos coruchéus
Onde nasce o poder morfológico.

© Ró Mar

*

IX

"Onde nasce o poder morfológico"
E a lógica se despe de sentido,
Surge um ardor imenso e desmedido
Como se o surrealmente fisiológico

Nascesse, por acaso, num zoológico
E fosse um estranho sem nunca o ter sido...
Ah, quem o não teria enaltecido
Se fosse belo e sábio ou antológico?

Vogasse a Barca num mar já rendido
Ao vírus mais letal, mais patológico
E fosse o tripulante dissolvido
 
Num punhado de plâncton ideológico...
Seja este poema aceite ou proibido,
Nada do que foi escrito é escatológico!

© Mª João Brito de Sousa

*

X

"Nada do que foi escrito é escatológico"
São meros laivos de raízes profundas
Ao vocábulo impugnando o lógico
Da maré, que se adivinha nas fundas!

Assim, esvaziado o pote mágico
Calcorreado vai o pensamento
Ao leme dum desnorte nostálgico
Implorando pelo sentimento.

Quando escasseia a leda inspiração
Desvanece o modo de frasear,
Que só dotados sabem da criação.

Cabe-me mover montanhas p'ra achar
O dom que outrora abria o coração
Num leque emotivo de fascinar!

© Ró Mar

*

XI

"Num leque emotivo de fascinar(!)"
Lançou ao vento um punho de sementes;
De pé ficou, cerrados os seus dentes
Que mais não tinham para mastigar

Já que as sementes rodavam no ar
Todas seguindo rotas bem diferentes...
Que faria sem ter ingredientes
Pra pôr na mesa o pão do seu jantar?

Por que razão tivera tais repentes
E perdera as sementes sem pensar?
O vento não devolve em pratos quentes

Palavras acabadas de idear,
Mas pode um poema ser manjar de gentes,
Tentear-lhes a fome... e até sobrar?

© Mª João Brito de Sousa

*

XII

"Tentear-lhes a fome... e até sobrar"
Para procriar fiapos noutra sequência
Expetante que venha a melhorar
O cardápio com dose de paciência.

E, por este labirinto sequiosa 
Duma boa prosa escarafuncho
Até aos confins, nada receosa,
Embora se denote o caruncho.

Tenha eu ainda alguns dentes molares
Até ao dia de partir... hei-de sorrir,
Dar dentadas nas côdeas e acenares

Ao universo o uno verso de devir
Num cear coerente de afagares
Saciar famintos de estro... coexistir...

© Ró Mar 

*

XIII

"Saciar famintos de estro... coexistir..."
Ser verbo e carne e nervo e até ser pão
Que desse verbo nasce humano e são
Enquanto a mão da Musa o permitir

E com dentes, ou não, saber sorrir,
Explorar a vida até à exaustão,
Escrever com toda a força da paixão,
Ser-se um vulcão que aprende a não explodir...

Movemos a montanha, mão com mão,
E abrimos as janelas do devir
Como quem abre uma outra dimensão

E se essa dimensão nos não servir,
Depressa mais janelas se abrirão
Sobre as montanhas que houver que subir!

© Mª João Brito de Sousa

*

XIV

"Sobre as montanhas que houver que subir"
Se o fôlego falhar, basta a vontade
Que ela é quem nos traz a felicidade
E este pequeno orgulho de existir

Que vai nascendo em quem não desistir
De ir dando quanto pode em qualidade,
Pois só assim se alcança a igualdade
E a alegria imensa de a fruir...

Não desistas agora! Mais um passo
E um outro ainda. Nunca te detenhas
Que o teu maior troféu é o cansaço;

Se lhe resistes, moverás montanhas...
Mas nunca esperes pelo meu abraço,
"Não te procurarei até que venhas"!

© Mª João Brito de Sousa

***

COROA DE SONETOS


de Mª JOÃO BRITO DE SOUSA e RÓ MAR


MOVER MONTANHAS

***

Horizontes da Poesia | 2022/01/21