COROA DE SONETOS
de Mª JOÃO BRITO DE SOUSA e RÓ MAR
MOVER MONTANHAS
***
I
Não te procurarei até que venhas
E que tragas contigo o que levaste
De mim, que te dei mais do que sonhaste,
De mim, que hoje abandonas e desdenhas
Como se as tuas glosas fossem estranhas
Aos versos que comigo partilhaste...
Voa, então, até onde te encantaste
Ainda que voando me detenhas
Mas se em verdade, Musa, me olvidaste,
Enquanto noutras vozes te entretenhas
Ache eu a voz da voz que em mim calaste
E ainda que me perca se me ganhas,
É no poema que hoje me negaste
Que encontro a força pra mover montanhas.
*
© Mª João Brito de Sousa
II
"Que encontro a força pra mover montanhas"
E destrono a Musa feiticeira,
Que de repente em manhas e artimanhas
Dá volta ao miolo e traz canseira!
Ah, como me apraz saber-me capaz
De improvisar sem ter fada madrinha
P'ra o toque final, tão bem que isso faz!
Não sendo ingrata, também sou estrelinha!
Venha o pôr do Sol, que eu desfilo ao lado!
Haja mar altaneiro e mais natureza
Para me consolar no poema amado!
Se tiveres de novo a delicadeza
De sobrevoar o meu céu estrelado
Serás o luar dos meus dias de tristeza.
© Ró Mar
*
III
"Serás o luar dos meus dias de tristeza"
E o sol das minhas noites de alegria,
Mas fada não serás onde a magia..
Seja maior que o pão que levo à mesa.
Se sou plebeia, serás tu princesa
De um reino que nem sei se principia
Ou finda assim que cessa a melodia
A que vou estando noite e dia presa?
Existirás pr`além da teoria
E serás, realmente, a chama acesa
Duma candeia que só me alumia
Quando a palavra voa e me não pesa?
Musa, não sei que chama ardente ou fria
Soube acender em mim tanta incerteza...
*
IV
"Soube acender em mim tanta incerteza..."
Por minha culpa, entreguei o coração
Num dia núveo p'ra sentir firmeza
Na minh' alma ao compor uma canção;
Mas, dias não são dias, hoje sei bem
O quanto tu me amaste na surdina;
Se me foges é porque queres-me bem
E eu sempre preciso da lamparina...
Ah, quantas as noites o Morfeu não vem!
E, o que me têm acesa noite adentro
És mesmo tu: ó Musa de todos sem...
Querubina da colina, epicentro
Da retina, qual o horizonte advém
Liberto, peculiar do circuncentro!
© Ró Mar
*
V
"Liberto, peculiar do circuncentro(!)",
Polígono imperfeito, deus de barro,
Espiral de fumo ou cinza de cigarro
E tudo o mais que exista cá por dentro
Quando de ti me afasto e desconcentro
E nunca sei se agarro e quando agarro...
Desse abraço improvável e bizarro
Há-de nascer a luz de um céu cruento
Montanhas trazes dentro do teu tarro
E algumas são de ferro e de cimento
Ainda fresco ou já mostrando o sarro
Do tempo em imparável movimento
Como se o ir e vir de um autocarro
Que não tem um motor nem traz assento
© Mª João Brito de Sousa
*
VI
"Que não tem um motor nem traz assento"
E este carcomido, desamparado,
Onde a poeira aninha no argumento
Ressaltando o tempo pré-encerrado!
Por mais que abra janelas p'ra arejar
A maleita está aqui de tal forma,
Que não resta dúvida a despistar
Nem exclamações, tornando-se norma.
O vai-e-vem de engrimância na escalada
Ressalta, saltam os carretos, teia
Premiando a permuta prá 'pousada'.
Imagético, contudo recheia
De esperança o olhar da voz calada
E os dedos tremulando a ideia!
© Ró Mar
*
VII
"E os dedos tremulando a ideia",
Movem montanhas, plantam mil florestas
E, solidários, limam as arestas
Das estrelas-do-mar na maré cheia
Ninguém os pára, ninguém os refreia;
Nem os arqueiros com as suas bestas
Podem abrir mais que pequenas frestas
No muro de vontade que os rodeia
E se cansados fazem suas sestas
No sal do mar, em castelos de areia,
Jamais as horas lhes serão funestas
Que à noite hão-de ter astros para a ceia
Degustados ao som de mil orquestras
Conduzidas por uma só sereia.
© Mª João Brito de Sousa
*
VIII
"Conduzidas por uma só sereia"
É mote de génio, que iça esta barca
Cambaleante entre o mar e a candeia
Na mística e aventurada matriarca;
Protetora das ninfas Oceânides
Criadora de floreado marítimo,
Que ascende às excelsas efemérides,
Ah, Tétis, Musa do vento Oceânico!
Move-se a Terra e ascende-se aos Céus
Neste belo pedaço mitológico
Onde se faz viagens pelos ilhéus;
Metáforas de mérito cronológico
Filiadas na Lumena dos coruchéus
Onde nasce o poder morfológico.
© Ró Mar
*
IX
"Onde nasce o poder morfológico"
E a lógica se despe de sentido,
Surge um ardor imenso e desmedido
Como se o surrealmente fisiológico
Nascesse, por acaso, num zoológico
E fosse um estranho sem nunca o ter sido...
Ah, quem o não teria enaltecido
Se fosse belo e sábio ou antológico?
Vogasse a Barca num mar já rendido
Ao vírus mais letal, mais patológico
E fosse o tripulante dissolvido
Num punhado de plâncton ideológico...
Seja este poema aceite ou proibido,
Nada do que foi escrito é escatológico!
© Mª João Brito de Sousa
*
X
"Nada do que foi escrito é escatológico"
São meros laivos de raízes profundas
Ao vocábulo impugnando o lógico
Da maré, que se adivinha nas fundas!
Assim, esvaziado o pote mágico
Calcorreado vai o pensamento
Ao leme dum desnorte nostálgico
Implorando pelo sentimento.
Quando escasseia a leda inspiração
Desvanece o modo de frasear,
Que só dotados sabem da criação.
Cabe-me mover montanhas p'ra achar
O dom que outrora abria o coração
Num leque emotivo de fascinar!
© Ró Mar
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XI
"Num leque emotivo de fascinar(!)"
Lançou ao vento um punho de sementes;
De pé ficou, cerrados os seus dentes
Que mais não tinham para mastigar
Já que as sementes rodavam no ar
Todas seguindo rotas bem diferentes...
Que faria sem ter ingredientes
Pra pôr na mesa o pão do seu jantar?
Por que razão tivera tais repentes
E perdera as sementes sem pensar?
O vento não devolve em pratos quentes
Palavras acabadas de idear,
Mas pode um poema ser manjar de gentes,
Tentear-lhes a fome... e até sobrar?
© Mª João Brito de Sousa
*
XII
"Tentear-lhes a fome... e até sobrar"
Para procriar fiapos noutra sequência
Expetante que venha a melhorar
O cardápio com dose de paciência.
E, por este labirinto sequiosa
Duma boa prosa escarafuncho
Até aos confins, nada receosa,
Embora se denote o caruncho.
Tenha eu ainda alguns dentes molares
Até ao dia de partir... hei-de sorrir,
Dar dentadas nas côdeas e acenares
Ao universo o uno verso de devir
Num cear coerente de afagares
Saciar famintos de estro... coexistir...
© Ró Mar
*
XIII
"Saciar famintos de estro... coexistir..."
Ser verbo e carne e nervo e até ser pão
Que desse verbo nasce humano e são
Enquanto a mão da Musa o permitir
E com dentes, ou não, saber sorrir,
Explorar a vida até à exaustão,
Escrever com toda a força da paixão,
Ser-se um vulcão que aprende a não explodir...
Movemos a montanha, mão com mão,
E abrimos as janelas do devir
Como quem abre uma outra dimensão
E se essa dimensão nos não servir,
Depressa mais janelas se abrirão
Sobre as montanhas que houver que subir!
© Mª João Brito de Sousa
*
XIV
"Sobre as montanhas que houver que subir"
Se o fôlego falhar, basta a vontade
Que ela é quem nos traz a felicidade
E este pequeno orgulho de existir
Que vai nascendo em quem não desistir
De ir dando quanto pode em qualidade,
Pois só assim se alcança a igualdade
E a alegria imensa de a fruir...
Não desistas agora! Mais um passo
E um outro ainda. Nunca te detenhas
Que o teu maior troféu é o cansaço;
Se lhe resistes, moverás montanhas...
Mas nunca esperes pelo meu abraço,
"Não te procurarei até que venhas"!
© Mª João Brito de Sousa
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COROA DE SONETOS
de Mª JOÃO BRITO DE SOUSA e RÓ MAR
MOVER MONTANHAS
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Horizontes da Poesia | 2022/01/21