COROA de SONETOS "A CRIANÇA..."
Autores: ARIEH NATSAC, Ró Mar e RAADOMINGOS
A criança que fui chora na estrada.
de Fernando Pessoa
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
Fernando Pessoa
*****
"A CRIANÇA..."
I
"A criança que fui chora na estrada,"
Descolorida por via d' incompreensão,
Por colo, histórias ou contos de fada,
Enfim, por afagos de coração!
Tantos momentos por viver! O senão
Por adiante, o universo de tanto e nada,
Onde não há lugares d' eleição,
Viagem que se prossegue encavacada!
Ah, hoje sinto um pesar de crescer
De não me ter despedido, do sobrevoo,
Do que ainda poderia ter d' aprender!
Continuo! Pois, o tempo dela acabou,
Foi o pai e a mãe, sem ninguém par' a proteger!
"Deixei-a ali quando vim ser quem sou."
© Ró Mar
*
II
"Deixei-a ali quando vim ser quem sou";
Tarde cheguei, partiu, foi-se embora.
Só encontrei a sombra do que lhe restou,
Até o que ficou dissipou-se na hora.
A inocência, a que por ora ainda chora;
Culpa p'lo que cedo nela embrenhou!
Naquela esquina, sem muita demora
A rua fez sina, que sorte lhe calhou!
Até que não foi tão trágico assim!
Houve outros momentos, que acompanhada
Me senti a mais bela flor do jardim!
Entretanto, nas voltas da vida deixada,
Ergo os cacos, construo o meu botequim,
"Mas hoje, vendo que o que sou é nada."
© RAADOMINGOS
*
III
"Mas hoje, vendo que o que sou é nada,"
Porque é que tanto construi e amealhei;
Se o que se leva para a outra morada,
É só o que desta vida gozei?
Tarde, já tarde aprendi e agora sei;
Não vale caminhar em outra estrada;
Fosse antes quando nasci e me criei;
Seria diferente a minha passada!
Viveria, a existência seria d' outra forma.
Daria amor, que não soube por onde andou!
Usaria o coração como plataforma.
Se concederem tempo ao corpo que restou,
O homem que em criança agora o transforma;
"Quero ir buscar quem fui onde ficou"!
© RAADOMINGOS
*
IV
"Quero ir buscar quem fui onde ficou"
Vestida de cinzento em tom raiado
Trazendo no seu manto o que levou
Lampejo que apagou céu estrelado
Mostrando a virtude que deu flor
Raios de encantamento desbravado
Hossana por se achar o vencedor
De tudo que alcançou e foi criado
Quando em presença estou; de fino oiro
Converte a natureza num tesoiro
Que nem a tirania sublevou…
Salta e pula risonha uma criança
Esquece a tempestade e vê bonança
"Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou"
© ARIEH NATSAC
*
V
"Ah como hei-de encontrá-lo. Quem errou"?
Perdido sem saber qual o caminho
Fruta amarga, semente, desfrutou
Agora vai debicando, mas sozinho
De asa ferida envolta em mistério
Como um livro que não tem e se aguda
Na paisagem p’ra lá do ser etéreo
Que tanta, tanta vida nos desnuda
Nas passadas pisadas ao relento
Que a noite é sombria onde esquento
O corpo que se levanta sem ter nada
Na nevoa lisonjeira que trespassa
Sem ter espada sem haver mordaça
"A vinda tem a regressão errada."
© ARIEH NATSAC
*
VI
"A vida tem a regressão errada"
Já nunca poderei voltar atrás
Sendo aquela criança transviada
Que mantinha por lema, bom rapaz
Era azougado e grande folião
Das horas destemidas sem segundos
Saltava tanto abismo à condição
Percorrendo os lugares mais profundos
Contra as hostilidades de uma vida
Que lhe foi à nascença prometida
Mas que tão depressa aproveitou
Para fazer o prumo da idade
Rumando sem conceito da verdade
"Já não sei de onde vim nem onde estou".
© ARIEH NATSAC
*
VII
"Já não sei de onde vim nem onde estou,"
Na ausência desmedida espero o sossego
Do meu desassossego, sei que sou
Parte dum tempo de pouco aconchego!
S' ao menos encontrasse o desapego
Ao que já não é, nos meandros do que sou!
No silêncio ensurdecedor a que chego,
A pausa merecida, meu ofego dou!
Ah, era meio caminho par' a claridade
Desta minha existência conturbada,
Por tal escassez de infância e puberdade!
E, se soubesse encontrar uma pousada
De bússola pronta, achar-me-ia na idade!
"De o não saber, minha alma está parada."
© Ró Mar
*
VIII
"De o não saber, minha alma está parada."
Perdida no sossego da razão
Que a leva com saudade de ser nada
Solta faz-lhe sangrar seu coração
Caminho no restolho em muita vida
Pássaro procurando o seu raminho
Da mocidade já muito sumida
Que ao longe vai e acena de mansinho
No escuro calendário sem ter folhas
Reserva de atitude de recolhas
São tantas as vontades de voltar
Com sorte do princípio, tanto queria
Tudo e nada não sei perguntaria?
"Se ao menos atingir neste lugar"
© ARIEH NATSAC
*
IX
“Se ao menos atingir neste lugar”
Serei tanto feliz como criança
E não vou p’ra ninguém localizar
O sintoma que tem a dor da esperança
É um barril de pólvora a pobreza
Que mata lentamente sem receio
Perdendo a confiança de uma mesa
Sendo pobre palavra desse meio
Na barrela dos olhos vejo aceso
O fogo que arde sem um contrapeso
Sem fazer desta vida um tal festim
Onde se roem ossos sem ter carne
Será onde não há quem encarne
“Um alto monte de onde possa enfim”
© ARIEH NATSAC
*
X
"Um alto monte, de onde possa enfim"
Descansar, olhando o céu por horizonte,
Que me é íntimo! Sentir-me-ei querubim
A renascer das raízes em pura fonte!
Lá do alto, olharei por todos aqueles,
Que como eu ficaram, enquanto crianças,
A olhar estrelas! O que é feito deles?
Será que ainda vivem nas esperanças?
Os que jogavam ao balão na praça
Eram amigos á séria e é de recordar
O pé descalço e a mão numa carcaça!
Ah, hoje o meu destino fez-me parar
E ver aquele tempo de (des)graça!
"O que esqueci, olhando-o, relembrar"!
© Ró Mar
*
XI
"O que esqueci, olhando-o, relembrar,"
O bocado da serra manto frio
Perdi naquele tempo meu olhar
Na delícia presente, desvario
E a pobre gente avança sem ter medo
Como se uma criança fosse ao tempo
Na imensidão joga com segredo
Que brota do seu corpo sem lamento
Esta pequena figura é um homem
Que brota desta terra feita mãe
Que ensinando sem livros sendo assim
Rasgando-lhe a pele abrindo a dor
Com palmos a crescer o seu valor
"Na ausência, ao menos, saberei de mim"
© ARIEH NATSAC
*
XII
"Na ausência, ao menos, saberei de mim,"
Astrolábio dos meus sentidos mediando,
Tal Pessoa, altura mediana; meu latim,
Que nem eu compreendo, vou arquitetando!
Poucas filosofias, que a vida é barata
E as letras saem-me caras; ainda lembro
D' escrever umas palavras em cascata
Na lousa carcomida, não era dezembro!
Ah, hoje é tudo fino e eu desatino!
Não que não tenha tino, mas, se vou julgar
O que sou não envergonho o menino...
Do qual estou equidistante a procurar
P'lo verbo qu' abrilhante o destino;
"E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar."
© Ró Mar
*
XIII
"E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar"
Tudo o que vale a pena em toda a criança,
Que tal como eu não pôde celebrar;
Quiçá, mudar de pensar, autoconfiança!
Ah, que tolice! Eu, a pensar em mudar
Toda aquela existência, análoga à minha,
Num tempo que me foge! Teimo em viajar
E encontrar o melhor de mim na estrelinha!
E, enquanto a comtemplo sinto, o paraíso!
Quaisquer cousa, nem sei bem o quê? Enfim,
A idade é minha e eu menino de juízo!
Parece amanhecer, cheirinho a alecrim,
Outro dia a inaugurar o sorriso
"Em mim, um pouco de quando era assim."
© Ró Mar
*
XIV
"Em mim um pouco de quando era assim"
Deixando tanta e impressa a saudade;
Na zoada que o vento faz, enfim;
Escuto o frescor da ida mocidade.
Pudesse encontrar-me - Piedade!
Oh vida, que subiria outro patim!
A criança some-se com a idade;
A percepção que chega é a do fim!
Em registo desbotado dum desenho;
Ecos áureos da verde gargalhada,
P'las nesgas frestas julgo qu' a detenho!
Agora que a reclamo não encontro nada;
As lágrimas pela face não as contenho,
"A criança que fui chora na estrada."
© RAADOMINGOS
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COROA de SONETOS "A CRIANÇA..."
Autores: ARIEH NATSAC, Ró Mar e RAADOMINGOS
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Sonetos do Universo | 2021